Nossa força feminina ancestral

Parte 2

Postado por Viviane Nogueira em 29 de novembro de 2021




O que envolve a ancestralidade me atravessa com intensidade.

Um estudo genético de ancestralidade latina, chamado projeto Candela, vem publicando artigos científicos importantes sobre nossas características. Esse projeto abrangeu 6.000 latinoamericanos, incluindo... Eu.

Sou amazonense e participei do estudo em terras gaúchas. E não é só o embranquecimento que eu notava no povo de lá. Elas são gurias, nós somos cunhantãs. Elas comem bergamotas, a gente come tucumã. A distância geográfica significa muita mudança cultural e de auto-identificação.

Quando recebi os meus resultados do projeto Candela, descobri que meus dentes convexos são de um formato essencialmente indígena. Eles disseram que eu não poderia ter herdado de outro povo. Descobri do que me constituo geneticamente e decidi entrevistar meus avós pra ver se iria coincidir. Na época eu tinha 4 avós vivos e lúcidos. Hoje, que a falta deles se faz rombo, nem sei dimensionar a dádiva que isso significou. Montei minha árvore genealógica.

Minhas ancestrais foram fortíssimas. Minha tataravó era Índia peruana que não falava nem português nem espanhol. Falava a língua da tribo dela, tribo que ela fugiu para se juntar com meu tataravô, que era holandês. Ele também foi deserdado por ficar com uma "mulher de cor". Eles desceram pro Amazonas e minha avó paterna lembra que a Índia peruana mascou a folha da coca até o último dia de sua vida (a folha de coca é usada para aliviar sintomas de altitude no Peru).

Eu saí de Manaus faz muitos anos, mas até hoje acho estranho ter que tratar minhas questões com os profissionais da saúde convencional (risos nervosos). A gente tá acostumada a ir à benzedeira, ou à rezadeira pra resolver os problemas. Minhas duas avós não suportam remédios alopáticos, elas misturam as plantas, é andiroba pra cá, copaíba pra lá. Tudo se resolve com um chá de cabacinha, até sinusite. Nesse tipo de doença crônica a gente não acredita. Cachaça pode ser remédio. Uma arruda bem rezada cura qualquer mal estar.

E pro contexto da minha avó materna, Dona Mariazinha, que nasceu e viveu isolada num vilarejo no interior do Pará, é de se entender porque médicos e a farmácia não são tão necessários. Minha avó entrou num mercado pela primeira vez aos 24 anos. Antes disso ela plantou, pescou ou caçou tudo que comeu. A cama era de capim, a rede era costurada por ela. Matar aranha caranguejeira é como varrer a casa - é tudo muito naturalizado.

Como eu sou de uma família com muitas raízes amazônicas, eu só chego até o que meus avós lembraram. Em cartórios, só tenho informação de europeu. Minha ancestralidade é apagada dos registros, afinal, nunca foi assim que eles se comunicaram, né? Amazônidas boas como somos, gostamos mesmo é da oralidade. Minha bisa se foi quando eu tinha 13 anos. Ela morava no mesmo interior que minha avó saiu. Todo fim de tarde ela tava na frente da casa dela contando histórias das mais diversas possíveis. Minha bisa, que engravidou 22 vezes e ficou viúva 3. As histórias dela vivem pulsantes em mim, mas não existe uma só frase escrita por ela. Ela não sabia escrever.

Os Japoneses tem grandes livros da história da família. Essa é a forma que eles se comunicam transgeracionalmente. Os indígenas, os afrodescendentes, em sua maioria, não fazem igual. Eles também são da oralidade, como minha bisa. E é aí que minha história de família cruza com a história do Brasil. A colonização não foi só uma apropriação do corpo, mas também uma aniquilação do simbolismo que nos determina enquanto gente. Um indígena morto não é só um ser humano, são as memórias de um povo. Significa o rompimento com sua terra, sua cultura, seus ancestrais.

O poder que a escrita deu pra humanidade deve ser sem precedentes. É desse jeito que estou me comunicando com você nesse momento. Mas a escrita não precisa excluir outros tipos de conhecimento. A história da minha família é oral, e a missão da minha bisa, e agora da minha avó, é passar o conhecimento pra gente.

Eu acredito que só se caminha pra frente, só se vislumbra futuros, quando se conhece para trás, honrando o passado. É por isso que eu amo o simbolismo de Sankofa: Um pássaro africano de duas cabeças que, segundo a filosofia do povo Akan, significa “nunca é tarde para voltar e apanhar aquilo que ficou atrás”.

Interpretando por conta própria, vejo no sankofa o poder da ancestralidade feminina que eu carrego em mim. Eu já estive na barriga da minha avó materna. Você também já esteve na barriga da sua. Nós, mulheres, já nascemos com todos os óvulos que podem vir a ser um filho no futuro. Ou seja, quando sua avó estava gestando sua mãe, o início da sua vida já estava ali.

É por isso que independente da relação que você tem com as suas ancestrais, se você as conhece ou não, a conexão pode ir além. Nós já estivemos dentro delas. E eu, não vejo nada mais profundo e concreto do que o poder que as minhas mulheres passaram pra mim.

Ahoo, mulheres que habitam em mim!

Viviane Nogueira

Este é um relato pessoal,
sem nenhum
envolvimento profissional.

Crédito da Imagem: Não identificada, encontrada no Pinterest numa pesquisa por imagem.

Referências, glossário ou inspirações

  1. Cunhatã: do Tupi Guarani cunhã-antã = mulher resistente. Menina, garota.
  2. Tucumã: fruta da Amazônia. É possível consumir a fruta naturalmente, em conserva ou compotas, na salada de frutas e mais. Também é possível fazer sucos, geleias, doces e vitaminas com ela. Além disso, ela pode fazer parte da fabricação de produtos de beleza, como cremes hidratantes, loções e máscaras de hidratação capilar.
  3. Mastigação da folha de coca: com fins medicinais, é um hábito tão antigo quanto a própria civilização inca. Alcaloides da coca têm efeitos levemente estimulantes, ajudam a reduzir a fome e participam do processo digestivo, além de mitigar os efeitos da falta de oxigênio em regiões de altitudes excepcionais.
  4. Alopatia: é a medicina tradicional, que consiste em utilizar medicamentos que vão produzir no organismo do doente reação contrária aos sintomas que ele apresenta, a fim de diminuí-los ou neutralizá-los.
  5. Andiroba: do termo em tupi que significa "óleo amargo", andiroba é uma árvore de grande porte, nativa da Amazônia e que pode chegar a ter 30 metros de altura. O óleo de andiroba possui propriedades anti-sépticas, anti-inflamatórias e cicatrizantes.
  6. Copaíba: extraído do tronco da copaibeira, uma árvore da espécie Copaifera officinalis, o óleo de copaíba, ou bálsamo de copaíba, é um produto resinoso com propriedades anti-inflamatórias, cicatrizante, analgésicas e expectorantes, sendo indicado para ajudar na cicatrização de feridas, tosse ou para aliviar os sintomas da artrite, por exemplo.
  7. Cabacinha: também conhecida como buchinha-do-norte, o chá é indicado como excelente expectorante, auxiliando no tratamento de sinusite, rinite, bronquite, asma e outros problemas respiratórios.
  8. Aho: termo nativo-americano, indígena. Significa: obrigada, que assim seja, ou algo relacionado.
  9. Episódio de Podcast Mamilos - Ancestralidade
  10. Latin Americans show wide-spread Converso ancestry and imprint of local Native ancestry on physical appearance